sábado, 10 de outubro de 2009

Lisboa mata-nos

Lisboa mata-nos
Por Alexandra Lucas Coelho

Num filme estrangeiro de 1983, Lisboa é "a cidade branca", ainda estamos para saber como. Foi o que o cineasta Alain Tanner viu, mas não impunemente.

"Que cegueira", reagiu José Cardoso Pires, "em poucos lugares como este de tantas cores cada cor é feita". A saber: "Azul de azuis? Branco áspero de pérola e cinza? Ocres de pardacentos e vermelhos lisos?" (Lisboa, Livro de Bordo, 1998).

Já antes (em Era Bom que Trocássemos umas Ideias sobre o Assunto, 1995), Mário de Carvalho pusera o suíço Tanner a andar: "... disponho-me a jurar e a declarar notarialmente que branca não é. Basta subir ao miradouro da Senhora do Monte, ali a S. Gens, ou ao terraço do Hotel Sheraton, ou àquele edifício azul que fecha a Alameda D. Afonso Henriques nos altos da Barão de Sabrosa, ou mesmo ao humilde convés dum cacilheiro, para poder verificar que a cidade, descontando o grená rugoso dos telhados, varia entre os rosa-suaves, os verdes-esbatidos, os amarelos-doces, em milhentas tonalidades que não fazem mal à vista".

Nas crónicas de Lisboa Contada pelos Dedos, 2001, Baptista Bastos reforça: "A cor lilás de Nikias, a cambiante rosa de Botelho, o azul-turquesa de Pavia, a paleta caprichosa de Francisco Smith, a veemência explosiva de Almada, a convulsão pictórica de Vieira da Silva e, até, os amarelos serenos de Arpad".

E depois, honra feita às cores, Lisboa em 2000 é, ainda, segundo B.B., "a tença que Luís Vaz esmola no Paço, os fados populares e cívicos de Linhares Barbosa cantados por Amália, os velhos do O"Neill, o bagaço de Pessoa, os seios e as ancas das carvoeiras de Cesário, a escola do paraíso de José Rodrigues Miguéis, o punho vertical e terno de Ary e as vagabundagens de José Gomes Ferreira".

Cidade da eterna partida - "aventura, alumbramento, bravura, sonho e flores" -, à chegada "traz consigo o drama e a tragédia: as caravelas destroçadas, os torna-viagens da miséria, os soldados estropiados, os corpos dos mortos, o fim do império. Um lenço: o sudário". O Tejo "personifica o que traz e o que leva, mas também o que separa".

A chegar, justamente, foi como José Saramago inventou Pessoa/Reis (O Ano da Morte de Ricardo Reis, 1984), vindo do Brasil para a boca do Inverno: "O Rossio está cheio. Caiu uma bátega rápida, abriram-se guarda-chuvas, carapaças luzidias de insectos".

De perto e ao longe

Mas ia Saramago muito longe do Nobel e já Lisboa tinha umbest seller- uma Lisboa de pancadaria, tusa e cinema. FoiO Que Diz Molero pela mão de Dinis Machado, cem mil leitores para um Bairro Alto que há muito não há.

Bem o conheceu Cardoso Pires em muitas daquelas navegações que são os bares, dizia ele.

De resto, abrindo ozoom, "em frente é o rio que corre para os meridianos do paraíso", e sobre ele "uma cidade em geometria esquiva, colinas, requebros, ondulações", como se vê ao "meter pelo abandonado Cais do Ginjal" para "assistir, do outro lado do rio, ao descair da luz" (Lisboa, Livro de Bordo).

Tudo tão verdade ao longe como quando se cheira ao perto: "Cheiros, pois então: o do peixe de sal e barrica nas lojas da Rua do Arsenal, não vamos mais longe; o da maresia a certas horas das docas do Tejo; o do Verão nocturno dos ajardinados da Lapa; o dos armazéns de aprestos marítimos entre Santos e o Cais do Sodré; o do peixe a grelhar em fogareiro à porta dos tascos de recanto ou de travessa, desde o Bairro Alto a Carnide; o cheiro fumegante das castanhas a assar nos fogareiros dos vendedores ambulantes".

E nada disto deixa de ser verdade por também ser verdade isto: "A merda do mundo desagua aqui", escreve Maria Velho da Costa de uma Lisboa já com CCB, Lux e Gare do Oriente, cidade de grafitti e de tráfico, mestiça, melancólica, "a afogar-se no próprio vómito" (Irene ou o Contrato Social, 2000).

Em certos dias (por exemplo,O Rapaz de Botticelli, 2002), Mafalda Ivo Cruz também vê esta Lisboa, mas mais obscura e cheia de invisíveis - os fantasmas da ópera no tempo em que Almada Negreiros andava de eléctrico; os imigrantes de agora entre o Chiado e o Colombo.

Hoje, se for a Benfica, é o Colombo que António Lobo Antunes vai ver: "Hoje, se vou a Benfica não encontro Benfica. Os pavões calaram-se, nenhuma cegonha na palmeira dos Correios

(já não existe a palmeira dos Correios, a quinta dos Lobo Antunes foi vendida)

o senhor Silvino, o senhor Florindo e o senhor Jardim morreram, ergueram prédios no lugar das casas, mas eu suspeito que por baixo destes edifícios de cinco e seis e sete e oito e nove andares, num ponto qualquer sob marquises e sucursais de banco, o senhor Paulo ainda conserta, com guitas e caniços, as asas dos pardais, a dona Maria Salgado ainda trota de vivenda em vivenda com a Sagrada Família na sua redoma embaciada, o Lafaiete e o Jaurés jogam ao virinhas na Calçada do Tojal cercados de vasos de manjerico e madrinhas de chinelos. Não há pavões nem cegonhas e contudo a acácia dos meus pais, teimosa, resiste. Talvez que só a acácia resista, que só ela sobeje desse tempo como o mastro, furando as ondas, de um navio submerso".

E, além de Benfica, Lobo Antunes desdobra-se em Arletes e Anísios para contar o nosso lado Penha de França-Campo de Ourique, a Almirante Reis das pensões aos Anjos, ou a Grande Lisboa de quem vive na Rebelva, no Seixal, em Alcochete (Livro de Crónicas, Dom Quixote, 1998).

Por baixo de Lisboa

A história é longuíssima, cinzas e ossos debaixo dos nossos pés.

"As pessoas subiam e desciam sobre as pedras e o barro, e amparavam-se ao que podiam, em desequilíbrio. Talvez que, sob aquilo que pisavam, ainda existissem corpos calcinados." Hélia Correia a descrever o terramoto de 1755 emLillias Fraser (2001).

Com um pé na água e outro na terra que tremeu, a cidade teme mas não se mexe.

"Que mundo existe debaixo de Lisboa!", exclama Rui Cardoso Martins emDeixem Passar o Homem Invisível (Dom Quixote, 2009), um livro que atravessa as entranhas da cidade, de São Sebastião ao Tejo, depois de uma pequena catástrofe avivar a Grande Catástrofe.

"A zona que vai desde o Parque, ali acima, até debaixo dos armazéns espanhóis, e provavelmente parte desta encosta, serviu de vala comum no Terramoto de 1755." Ou: "Nas cheias de 1967, por causa da balbúrdia das casas em leito de cheia, morreram umas 700 pessoas."

Podem recuar-se até mil anos, que os mortos estão quase à tona: "Lá perto da câmara municipal até soldados dos tempos dos mouros, com cota de malha, eles encontraram ao instalarem as novas linhas da TV Cabo".

Pois assim se fez um império. "- Cais das Colunas, Praça do Comércio, o coração do império português inundado (...). Um império da trampa, às avessas, por cima e debaixo do chão, mas império."

E no princípio e no fim está Lisboa.

Espelho nosso

Sessenta poemas lhe dedicou Armando Silva Carvalho num só livro (Lisboas, 2000), a começar por este:

"Umas vezes oblíqua aos olhos de quem ama / a liquidez das cúpulas sonoras / onde ondulam as casas / na sua pulsação / nervosa e feminina. // Outras vezes erecta e pombalina / talhada para letras / de câmbio / velha receptora / e hoje só senhora / dum tempo fixo e mudo / indiferente à pedra. // Mas mais das vezes crespa / nas ondas ruidosas / erguidas da terra ébria / vasto espelho de bar para novas aventuras".

Sophia de Mello Breyner Andresen - que veio do Norte e se fez lisboeta numa daquelas raras casas com rio e com jardim, no bairro da Graça - viu "Lisboa oscilando como uma grande barca" em 1977. Mas no ano seguinte também a viu assim: "Inversa navegação / Tédio já sem Tejo / Cinzento hostil dos quartos / Ruas desoladas / Verso a verso / Lisboa anti-pátria da vida".

Espelho de tudo em nós, flutuante. "Há-de flutuar uma cidade", escreveu Al Berto, e como Lisboa está presa ao mar.

Nos anos 2000, Manuel de Freitas tem sido o poeta desta vocação para a derrota. "Cidade real, / lixo das quimeras todas", escreveu em A Flor dos Terramotos(2005). E emBlues for Mary Jane(2004): "Quando entardece, em Lisboa, / já sem eléctricos, já sem / Rui Cinatti, já sem tanta coisa. (...) Este navio vai partir agora. / Não navega, não cavalga, não tem espelhos. / Página a página nos matamos / - portugueses, suaves, tão concretos." Ou, no fim deGame Over (2002), isto: "um mar que foi apenas a vontade / de o ser, mas não muita".

E ainda assim, sempre que recuamos um passo para ver Lisboa, ficamos cegos. Nenhuma outra cidade será nunca tão bela como se a víssemos pela primeira vez.

Escreveu Fernando Assis Pacheco, "A uns amigos partindo-se para a América", no começo dos anos 80: "Se fosse Deus parava o sol sobre Lisboa".

Lisboa mata-nos
Por Alexandra Lucas Coelho

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