Notável discurso da deputada Natália Correia, na sessão parlamentar de 22 de Março de 1990 e publicada no Diário da Assembleia da República a 23 de Março de 1990, número 55
Logo no século XVI, Rui Gonçalves, lente de Direito Civil, oriundo da ilha de São Miguel, o que me é, obviamente, motivo de orgulho, defende os «privilégios e prerrogativas que o género feminino tem por direito comum e ordenaçooens do reino, mais que o género masculino», num livro assim intitulado, em que reconhece levar a mulher decidida vantagem de ânimo e psique nas qualidades requeridas para a governação do reino.
Ainda no século XVI, dentro do ideário do humanismo cívico, Duarte Nunes de Leão, na sua Descrição do Reino de Portugal, enaltece os prodígios das mulheres que nessa época tinham grande eminência nas letras, e João de Barros, no seu Espelho de Casados, afirmando que as mulheres são tão hábeis e sabedoras quanto os homens, acrescenta: «e se me disserem que muitas o não são, digo eu que também há muitos néscios e desarrazoados».
Certamente que tão fervoroso feminismo tinha o seu fundamento numa plêiada de mulheres notáveis. Dispensando-me de evocar aquelas cuja fama logrou romper as sombras com que a crónica as envolveu — Joana Vaz, Públia, Hortênsia de Castro e outras —, recordo, das latinisias que precederam de 50 anos o círculo letrado da infama D. Maria, essa extraordinária Leonor de Noronha, discípula dilecta de Cataldo Parísio Sículo, animador na corte portuguesa de um movimento cultural de cariz renascentista, que nela diz ter encontrado uma coisa do céu, a sibila de cumas.
Pois terá sido, na opinião autorizada do camonista José Maria Rodrigues, na tradução, e acrescento por D. Leonor, da Crónica Geral, de Marcanlonio Cocei Sabellicus, e da Crónica Geral da Eneida, do mesmo autor, que Camões encontrou uma das fontes de Os Lusíadas.
Ainda no século XVI, dentro do ideário do humanismo cívico, Duarte Nunes de Leão, na sua Descrição do Reino de Portugal, enaltece os prodígios das mulheres que nessa época tinham grande eminência nas letras, e João de Barros, no seu Espelho de Casados, afirmando que as mulheres são tão hábeis e sabedoras quanto os homens, acrescenta: «e se me disserem que muitas o não são, digo eu que também há muitos néscios e desarrazoados».
Certamente que tão fervoroso feminismo tinha o seu fundamento numa plêiada de mulheres notáveis. Dispensando-me de evocar aquelas cuja fama logrou romper as sombras com que a crónica as envolveu — Joana Vaz, Públia, Hortênsia de Castro e outras —, recordo, das latinisias que precederam de 50 anos o círculo letrado da infama D. Maria, essa extraordinária Leonor de Noronha, discípula dilecta de Cataldo Parísio Sículo, animador na corte portuguesa de um movimento cultural de cariz renascentista, que nela diz ter encontrado uma coisa do céu, a sibila de cumas.
Pois terá sido, na opinião autorizada do camonista José Maria Rodrigues, na tradução, e acrescento por D. Leonor, da Crónica Geral, de Marcanlonio Cocei Sabellicus, e da Crónica Geral da Eneida, do mesmo autor, que Camões encontrou uma das fontes de Os Lusíadas.
Considere-se ainda que não só nas letras, mas também nas armas (o que não me entusiasma muito, mas é um facto!), se distinguiram as mulheres que, oriundas da linhagem de Brites de Almeida e de Deuladeu Martins, e prosseguida nas guerras da Restauração com Mariana Lencasire, e no século XIX, com a Maria da Fonte, protagonizaram, no século XVI, em Cafim, no Norte de África, c sobretudo nos cercos de Diu, um ardor na peleja que legendariamente se acendeu na bravura de Ana Fernandes, a celebrada «velha de Diu».
Mas, já entrando no século XVII, continuam a fazer-se ouvir as vozes masculinas que rendem louvores aos méritos intelectuais e artísticos e mesmo proféticos do sexo feminino. É D. Francisco de Portugal na sua Arte de Galantería, dizendo ser coisa assaz lúcida o estimar o que as mulheres dizem como profecias e oráculos.
É D. Francisco Manuel de Melo e outros escritores a nomearem «fénix dos engenhos lusitanos» essa genial poetisa Soror Violante do Céu, que, antes de professar, já aos 17 anos era assaz admirada para que fosse escolhida uma comédia da sua autoria para ser representada nas festas oferecidas a Filipe III, na sua visita a Portugal.
São os corifeus da literatura a consagrarem outra notável poetisa, Soror Maria do Céu, «assombro do sexo feminino, inveja do masculino e admiração de ambos», assim a glorificaram os do seu tempo, preito que lhe é rendido pelo próprio qualifïcador do Santo Ofício, Padre Manuel Boaventura de São Gião, que, no seu parecer sobre um livro da poetisa, não escasso em timbres profanos como a poesia de Soror Violante do Céu, diz que ela é prodígio da natureza que excede a apreensão humana.
Em cobrar encómios semelhantes não lhes fica atrás Madalena da Glória, que, com as outras duas, forma a cintilante triologia de poetisas do século xvii, pois, como as outras, teve panegirístas fanáticos, que a designaram por «fénix dos engenhos».
Soror Madalena da Glória era também pintora, o que me leva a acentuar que a pintura, bastante cultivada neste período por mulheres artistas, hoje ignoradas, teve o seu expoente feminino em Josefa de Óbidos, que continua a encantar-nos com a voluptuosidade da doçaria das suas naturezas-mortas e com o lirismo encantador dos seus Meninos Jesus.
E chegamos ao século xviii. O Iluminismo contém uma componente feminista de que é arauto Luís António Vemey, que, no seu Verdadeiro Método de Estudar, essa extraordinária figura da nossa história da pedagogia, prescreve o que se deve ensinar às mulheres, que considera tão dotadas intelectualmente quanto os homens, indo mesmo ao ponto de afirmar que se elas se dedicassem ao estudo como os homens, então veríamos quem reinava.
Também desta época, mas não compartilhando a confiança iluminística na razão, é uma obra, Reflexões sobre a Vaidade dos Homens, em que o autor, Matias Aires, se insurge contra a situação da mulher sujeita a uma condenável subalternização. Em bom entendimento estaria ele nestas ideias com a irmã, Teresa Margarida da Silva Orta, nascida no Brasil, autora da novela Aventuras de Diofenes, em que se inscreve a marca feminista, que teve a honra de ser a percursora do romance brasileiro.
É nesta época, em que proliferam poetizas de grande mérito, que, de entre elas, esplende Leonor de Almeida, a grande Aloma. Já muito jovem, reclusa no convento de Cheias em virtude do seu parentesco com os Távoras, Leonor de Almeida faz afluir ao convento os melhores poetas do tempo, que vão admirar esse prodígio feminino. E dela que erradia, em Portugal, uma nova cultura que faz voltar a atenção da juventude para uma literatura que, vinda da Alemanha, vai revolucionar as letras nacionais: o Romantismo.
Alexandre Herculano era um desses jovens, que, no elogio que tece à poetisa por ocasião da sua morte, se confessa discípulo dessa mulher, sua mestra em conhecimentos nos quais nenhum português a igualava. São palavras de Alexandre Herculano.
Pois é este Alexandre Herculano, cavaleiro romântico da Ordem da Sabedoria Feminina, que na sua História de Portugal acentua ter sido durante a regência de D. Teresa que a nacionalidade portuguesa começou a caractcrizar--se, tornando-se ela própria — ela, D. Teresa — vítima do excesso com que fez radicar-se e definir-se esse sentimento.
Nesta mesma doutrina se situa Fernando Pessoa quando exalta em D. Teresa o seio augusto que amamentou a Nação. E previne:
Dê lua prece outro desuno A quem fadou o instinto teu! O homem que foi o teu menino Envelheceu
Envelheceu, sim, pois fatalmente terá de enfermar o homem de cansaço do poder, segundo a lei natural de que tudo se esgota, atingindo o seu termo.
Exorto-vos, por isso, Srs. Deputados, como representantes da Nação que no seu longo passado tanto enalteceu a mulher, através das vozes dos seus mais ilustres varões, o que desmente a tradição machista portuguesa, a tomar o alerta do poeta como bom conselheiro. Expulsai do vosso ânimo e das vossa práticas uma agónica miso-ginia, que ofende a memória dos ascendentes que ilustraram o vosso sexo.
O feminismo histórico, que forte incidência teve na implantação e desenvolvimento da I República, é assaz conhecido para que lhe dê realce nesta minha resenha dos olvidados vultos masculinos que tanto enalteceram os engenhos femininos. Mas, na aurora desse feminismo, cumpre recordar D. António da Costa e o conde de Sabugosa, que se distinguiram como cronistas do relevo que a mulher teve na sociedade portuguesa. E recordarei que o conde de Sabugosa dedicou páginas de grande admiração a essa notável duquesa de Palmeia, escultora e fundadora das cozinhas económicas, conhecida no seu tempo como a duquesa socialista, trisavô do deputado Pedro Campilho e meu grande amigo, ascendência que muito o honra.
Assinale-se que estes dois autores eram representantes do «velho» Portugal, que aos méritos intelectuais da mulher deu o pedestal que o patrismo burguês tudo faria por derrubar.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Propus-me trazer à luz vozes ignoradas ou esquecidas do passado que, provando ser o tão falado machismo português uma gabarolice frívola sem consistência nem tradição cultural no nosso país, se juntam à prece com que o poeta da Mensagem termina o poema que dedica à mãe da nacionalidade:
Mas iodo o vivo é eterno infante Onde estás e não há o dia. No antigo seio, vigilante De novo o cria
Atente nisto, o sexo masculino c saiba renascer das cinzas de um poder que milenariamente lhe pesa. Porque já neste mundo de vertiginosas mudanças, sociólogos do futuro avançam vaticínios baseados na leitura de sinais que indicam que no ano 2000 o poder transitará para a liderança feminina. Salvo seja! Que esfalfadela!
Risos.
Por mim, podem os homens ficar nos governos a gerir coisas cada vez menos interessantes, mas de que eles gostam muito, como a economia e a política que a serve,...
Risos.
... contanto que tirem da sua natureza aquilo que também há de feminino neles, a fim de que não haja fricção com a política de desenvolvimento cultural, que, essa sim, deve ser o pelouro das mulheres que, pela sua sensibilidade e paixão pelas artes, estão naturalmente vocacionadas para a exercer, não esquecendo, claro, que a cultura é o «motor» da mudança exigida pela crise de valores que está a abalar os alicerces desta nossa civilização que o homem fundou.
Aplausos gerais."
E em resposta a alguns deputados, refere:
"A Sr.ª Natália Correia (PRD): — Querido amigo Pedro Campilho, agradeço-lhe as palavras que teve.
Minha querida amiga, falemos assim, Manuela de Aguiar, há coisas em que efectivamente não nos entendemos. Realmente, a minha querida amiga segue uma linha feminista que eu não sigo...
Risos.
... e que às vezes colide com determinadas atitudes que eu estranho em si, mas enfim...
Risos.
De qualquer maneira, devo dizer que não falo em divisão de trabalho e que fundamentei histórica e culturalmente o que disse.
No entanto, quero lembrar-lhe que foi sempre nos salões das mulheres que se desenvolveu a cultura europeia.
Não sei, mas talvez se interesse pela economia. Não repudiu a política. O que repudiu é a política tal como ela se exerce. Por isso, penso que tem de nascer uma nova cultura para que dela brote uma nova política. Enfio, sim, aí estamos de acordo.
Apesar de pensar que a mulher tem uma palavra muito importante a dizer no Poder, sou pelo androginato social, não estou interessada na inversão de valores. Não podemos derrubar os simpáticos homens, que são tão agradáveis...
Risos.
... para as mulheres realmente tomarem conta do Poder. Não!... Sou pela bissexualidade!... Bem, não propriamente no aspecto erótico...
Risos.
Mas também pode ser, que não me importo.
Risos.
Também pode ser, porque não sou puritana.
Risos.
E se unirmos o que há de feminino no homem... foi por isso que lancei uma exortação para que o homem assuma o que tem de feminino, porque isso é necessário. E quando falo de uma cultura nunca digo uma cultura feminina, mas digo a cultura do feminino, que é também a cultura do homem que, subjugado, enfim, por uma cultura nacionalista, teve de esmagar esses impulsos.
Porém, esses impulsos são muito necessários para a mudança da nossa sociedade. Agora, naturalmente, a mulher, por uma ociosidade a que foi forçada, foi acumulando energias que talvez a predisponham para ser mais activa no mundo da política cultural, que eu penso ser o seu domínio natural, porque é a cultura que vai transformar tudo. Sempre foi assim e assim há-de ser. Não estou a substimar o papel da mulher, bem pelo contrário! Quanto àquele senhor...
O Sr. Amândio Gomes (PSD): — Amândio Gomes!
A Oradora: — Desculpe, Sr. Deputado, mas faço-lhe notar que a «bomba» demográfica é um perigo que ameaça a nossa civilização.
Risos
Realmente a reprodução da espécie tem de continuar, nós não podemos desaparecer da face da Terra.
Todavia, a «mulher parideira» não é propriamente o modelo que me encanta.
Aplausos do PRD. do PS. do PCP e de Os Verdes e risos do PSD e do CDS."
(Com os respectivos agradecimentos ao José Daniel Soares Ferreira)
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