5.4.10 - 19:20 (José Pacheco Pereira)
Não me refiro aqui a livros avulsos, porque livros avulsos mesmo que sejam muitos não fazem uma biblioteca. Refiro-me a bibliotecas verdadeiras, colecções privadas de livros que não são meros ajuntamentos, ou fachada para dar entrevistas e receber alguém num escritório. Uma regra, com fundamento na minha experiência, diz-me que a partir de mil livros a biblioteca não contém só livros mas a identidade do seu "autor". São estas bibliotecas que me interessam, muitas vezes mais do que os livros em si, mesmo quando não contém raridades bibliográficas. Bibliotecas que são parte de uma vida, livros que foram escolhidos por uma razão qualquer, que foram lidos pelo menos em parte, e que serviam mais de espelho do seu dono do que de fachada de estantes. E são essas bibliotecas que, na morte, são tão trágicas como é a morte de alguém.
Já as vi nas estantes, mas o que é mais comum é que quando ainda aí permanecem é porque já foram ou vão ser vendidas a algum alfarrabista ou esperam um leiloeiro. Na verdade, é esse o destino das bibliotecas com mais preciosidades, e que são vistas pelos herdeiros como um valor essencial da herança. Também aqui se compreende visto que nem toda a gente gosta de livros, nem tem as condições materiais para os manter. E não seriam capazes de lhes dar continuidade, como colecções valiosas que exigem muito. Nesse caso, e se a venda for bem feita, o catálogo é o último momento da integridade da biblioteca e, num certo sentido, fica aí a sombra da identidade do seu possuidor. E os livros alimentam outras bibliotecas e outras colecções. É aquilo que se pode chamar de morte digna, se é que há morte que seja digna.
Mas, mesmo bibliotecas preciosas morrem mal por ignorância e cupidez, de gente que quer despachar tudo rapidamente, e que quando se chega à biblioteca já hordas de herdeiros passaram tudo a pente fino para levar das encadernações mais vistosas aos lustres e naperons. Lustres e naperons, porque bibliotecas são coisa cada vez mais de gente antiga, porque nos apartamentos de Telheiras não há espaço para livros que se vejam, nem a "vida moderna" permite ocupar tanta parede. Só o "plasma" dá para uma estante inteira, ou melhor, não dá porque tira. Para além disso há normalmente um membro do casal, ou algum membro das formas actuais de uniões monogâmicas sucessivas - esta é uma história que já ouvi dezenas de vezes -, que conduz uma guerra surda ou sonora contra o "espaço" que ocupam os livros. E uma parte vai para a arrecadação, a mais antiga normalmente, a que foi comprada há mais tempo, e então revistas e jornais são periodicamente purgados da "vida moderna".
Não estou a condenar ninguém, a "vida moderna" não dá mesmo para ter livros que se vejam em casa. De passagem e com declaração de interesse: não deitem nada fora, eu vou à mais complicada arrecadação de terraço ou de garagem, buscar papéis para lhes dar outra vida. Não há garantias de eternidade, mas se depender do humano esforço, eu faço com gosto. Tomem este artigo como uma página de publicidade, verdade seja que não lucrativa. É para o "colectivo", como diz o PCP.
Neste cemitério dos livros, eu gosto de bibliotecas "comuns" feitas por gente comum que gosta de livros. Bibliotecas de autodidacta na província, feitas quase sempre por gente muito especial, verdadeiros excêntricos, muitas vezes solitários, com interesses muito especiais, obsessivos, que marcam as bibliotecas com a sua vida. Tenho uma de um homem com poucos estudos académicos, soldado da GNR, depois da Polícia de Viação e Trânsito, poliglota, missionário evangélico, que vivia sozinho, e que o único membro da família sobrante vendeu a peso a poucos dias da morte, como se fosse uma vingança qualquer para a excentricidade que se pode perceber do "autor" da biblioteca. Tenho a de Francisco Ferreira, o "Chico da CUF", o que sobrou do seu longo e acidentado périplo pelo exílio na URSS, com os seus clássicos russos em russo, Tolstoi, Tchekov, Lermontov, Turgueniev, mas também os dicionários que usava e os seus cadernos de autodidacta de exercícios de matemática. Tenho outra, mais pequena, mais de revistas, papéis, programas, partituras, desenhos, do que de livros, feita por um actor secundário de revistas do Parque Mayer, já há muito morto, e que foi mantida como memória pela viúva. Outra foi-me oferecida no final de um programa de rádio, um daqueles estandardizados em que se fala das "músicas da vida" na Antena 2, por um filho de um velho professor de liceu de Germânicas que me disse para a ir buscar porque as músicas que passei eram também do agrado do seu pai que tinha morrido. E lá trouxe uma pequena biblioteca cheia de Shakespeare, dos clássicos ingleses, de Goethe, de estudos de literatura alemã e inglesa feita nos anos quarenta e cinquenta. E lá veio também uma daquelas coisas que são marcas imediatas da identidade política, muitas vezes discreta, do seu autor: uma colecção do Diabo. Essas marcas são sempre as mesmas, o Diabo ou o Sol Nascente, as primeiras edições de Redol, de Ferreira de Castro, os livros da Biblioteca Cosmos.
Não tendo condições para manter os livros separados, eles dissolvem-se na biblioteca mais geral, mas digitalizo a capa dos livros numa pasta electrónica separada. Como não tenho tempo para fazer fichas, é assim que os organizo. Mas uma parte fica sempre separada: os papéis que vêm juntos, fora e dentro dos livros, as dedicatórias, os ex-líbris, e tudo que possa servir para lhes manter a identidade. E assim não morrem de todo.
(Versão do Público de 3 de Abril de 2010.)
(url)
(Foto de António Leal.)
Se for pessimista posso dizer que tenho em casa várias bibliotecas mortas. Se quiser ser optimista, várias bibliotecas que salvei de morrer, algumas in extremis. Explico-me: no ofício de bibliófilo, de amador de livros, encontro-me muitas vezes com restos de bibliotecas, ou nalguns casos com bibliotecas inteiras, que recolho a casa, com as dificuldades que os livros transportam. Livros são matéria difícil e cara de manter: ocupam muito espaço, são muito pesados, ganham pó e humidade, bolores e uma fauna sinistra de insectos que já leram muito mais do que os humanos. Leram aliás de uma forma mais holística, comendo livros, jornais e revistas. Eu que sou gandhiano e vagamente budista em relação a todas as formas de vida - nunca se sabe que inimigos meus, ignorantes presumidos em vida, reincarnaram em caruncho ou "peixinhos de prata" por castigo divino - transformo-me num Átila diante desses bichos.Não me refiro aqui a livros avulsos, porque livros avulsos mesmo que sejam muitos não fazem uma biblioteca. Refiro-me a bibliotecas verdadeiras, colecções privadas de livros que não são meros ajuntamentos, ou fachada para dar entrevistas e receber alguém num escritório. Uma regra, com fundamento na minha experiência, diz-me que a partir de mil livros a biblioteca não contém só livros mas a identidade do seu "autor". São estas bibliotecas que me interessam, muitas vezes mais do que os livros em si, mesmo quando não contém raridades bibliográficas. Bibliotecas que são parte de uma vida, livros que foram escolhidos por uma razão qualquer, que foram lidos pelo menos em parte, e que serviam mais de espelho do seu dono do que de fachada de estantes. E são essas bibliotecas que, na morte, são tão trágicas como é a morte de alguém.
Já as vi nas estantes, mas o que é mais comum é que quando ainda aí permanecem é porque já foram ou vão ser vendidas a algum alfarrabista ou esperam um leiloeiro. Na verdade, é esse o destino das bibliotecas com mais preciosidades, e que são vistas pelos herdeiros como um valor essencial da herança. Também aqui se compreende visto que nem toda a gente gosta de livros, nem tem as condições materiais para os manter. E não seriam capazes de lhes dar continuidade, como colecções valiosas que exigem muito. Nesse caso, e se a venda for bem feita, o catálogo é o último momento da integridade da biblioteca e, num certo sentido, fica aí a sombra da identidade do seu possuidor. E os livros alimentam outras bibliotecas e outras colecções. É aquilo que se pode chamar de morte digna, se é que há morte que seja digna.
Mas, mesmo bibliotecas preciosas morrem mal por ignorância e cupidez, de gente que quer despachar tudo rapidamente, e que quando se chega à biblioteca já hordas de herdeiros passaram tudo a pente fino para levar das encadernações mais vistosas aos lustres e naperons. Lustres e naperons, porque bibliotecas são coisa cada vez mais de gente antiga, porque nos apartamentos de Telheiras não há espaço para livros que se vejam, nem a "vida moderna" permite ocupar tanta parede. Só o "plasma" dá para uma estante inteira, ou melhor, não dá porque tira. Para além disso há normalmente um membro do casal, ou algum membro das formas actuais de uniões monogâmicas sucessivas - esta é uma história que já ouvi dezenas de vezes -, que conduz uma guerra surda ou sonora contra o "espaço" que ocupam os livros. E uma parte vai para a arrecadação, a mais antiga normalmente, a que foi comprada há mais tempo, e então revistas e jornais são periodicamente purgados da "vida moderna".
Não estou a condenar ninguém, a "vida moderna" não dá mesmo para ter livros que se vejam em casa. De passagem e com declaração de interesse: não deitem nada fora, eu vou à mais complicada arrecadação de terraço ou de garagem, buscar papéis para lhes dar outra vida. Não há garantias de eternidade, mas se depender do humano esforço, eu faço com gosto. Tomem este artigo como uma página de publicidade, verdade seja que não lucrativa. É para o "colectivo", como diz o PCP.
Neste cemitério dos livros, eu gosto de bibliotecas "comuns" feitas por gente comum que gosta de livros. Bibliotecas de autodidacta na província, feitas quase sempre por gente muito especial, verdadeiros excêntricos, muitas vezes solitários, com interesses muito especiais, obsessivos, que marcam as bibliotecas com a sua vida. Tenho uma de um homem com poucos estudos académicos, soldado da GNR, depois da Polícia de Viação e Trânsito, poliglota, missionário evangélico, que vivia sozinho, e que o único membro da família sobrante vendeu a peso a poucos dias da morte, como se fosse uma vingança qualquer para a excentricidade que se pode perceber do "autor" da biblioteca. Tenho a de Francisco Ferreira, o "Chico da CUF", o que sobrou do seu longo e acidentado périplo pelo exílio na URSS, com os seus clássicos russos em russo, Tolstoi, Tchekov, Lermontov, Turgueniev, mas também os dicionários que usava e os seus cadernos de autodidacta de exercícios de matemática. Tenho outra, mais pequena, mais de revistas, papéis, programas, partituras, desenhos, do que de livros, feita por um actor secundário de revistas do Parque Mayer, já há muito morto, e que foi mantida como memória pela viúva. Outra foi-me oferecida no final de um programa de rádio, um daqueles estandardizados em que se fala das "músicas da vida" na Antena 2, por um filho de um velho professor de liceu de Germânicas que me disse para a ir buscar porque as músicas que passei eram também do agrado do seu pai que tinha morrido. E lá trouxe uma pequena biblioteca cheia de Shakespeare, dos clássicos ingleses, de Goethe, de estudos de literatura alemã e inglesa feita nos anos quarenta e cinquenta. E lá veio também uma daquelas coisas que são marcas imediatas da identidade política, muitas vezes discreta, do seu autor: uma colecção do Diabo. Essas marcas são sempre as mesmas, o Diabo ou o Sol Nascente, as primeiras edições de Redol, de Ferreira de Castro, os livros da Biblioteca Cosmos.
Não tendo condições para manter os livros separados, eles dissolvem-se na biblioteca mais geral, mas digitalizo a capa dos livros numa pasta electrónica separada. Como não tenho tempo para fazer fichas, é assim que os organizo. Mas uma parte fica sempre separada: os papéis que vêm juntos, fora e dentro dos livros, as dedicatórias, os ex-líbris, e tudo que possa servir para lhes manter a identidade. E assim não morrem de todo.
(Versão do Público de 3 de Abril de 2010.)
(url)
Sem comentários:
Enviar um comentário