Ensaísta, escritor de ficção – mas talvez, acima de tudo, leitor. Instalou a sua magnífica biblioteca pessoal num presbitério medieval francês, onde reside. De passagem por Lisboa, Alberto Manguel falou com o Ípsilon.
Os livros e a leitura sempre nortearam – e ainda norteiam – a vida de Alberto Manguel. Aprendeu a ler por volta dos três anos e nunca mais parou. Quando era adolescente, leu em voz alta, durante vários anos, para Jorge Luis Borges, que tinha ficado cego. Mais tarde, começou a escrever sobre livros, leituras e leitores – e o seu “Uma História da Leitura” (publicado em Portugal em 1999 pela Presença) tornou-se um best-seller mundial.
Nasceu em Buenos Aires em 1948, criou-se em Israel, fez o liceu na Argentina, viveu em sítios longínquos como Taiti. Nos anos 1980 mudou-se para Toronto, no Canadá, e tornou-se cidadão canadiano. De há 10 anos para cá, vive no Sul de França.
As suas primeiras línguas foram o inglês e o alemão e só mais tarde viria o espanhol, explicou Manguel em Lisboa, durante uma conversa pública na semana passada com Francisco José Viegas, no âmbito do Festival Silêncio. “Os meus pais quiseram que eu tivesse uma aia checa de língua alemã que me falasse inglês. Eles, por seu lado, falavam espanhol e francês – o que significa que eu não falei com os meus pais até aos oito anos…” Sentido de humor e simpatia irresistíveis. O eclectismo de Manguel não se limita à geografia e à linguística. Eterno leitor de Homero ou Dante, adora novelas policiais e ficção científica e não alinha nas modas nem nos cânones estabelecidos. “Há grandes obras, que reconheço que são grandes obras, mas que a mim não me interessam.”
Gosta muito de ler na cama e está “sempre a ler”. Todos os dias, antes de tomar o pequeno almoço, lê um canto de “A Divina Comédia” (“é o meu yoga”). Fala dos 40 mil livros que compõem a sua imponente biblioteca, instalada numa ruína medieval restaurada, como se de 40 mil filhos se tratasse (ele próprio tem três, já crescidos).
O ebook, explicou ainda, não é mais do que “uma tábua de argila com mais memória”, acrescentando que – cúmulo da ironia -, depois de termos abandonado os rolos de pergaminho para adoptar o codex com as suas páginas encadernadas, muito mais prático de ler, voltamos… a fazer scroll às páginas nos ecrãs de computador…
Não usa telemóvel, nem Internet, não tem email. Não os acha úteis. Os amigos ofereceram-lhe um site pessoal nos seus 60 anos (
alberto.manguel.com), que “ao que parece, funciona muito bem”. No fundo, a Internet é como uma grande biblioteca – e ele já tem a dele.
A sua obra está toda ela dedicada ao lado maravilhoso da leitura, do acto de ler. A sua paixão pela leitura vem de onde? Nasce-se leitor ou uma pessoa torna-se leitora?
Penso que somos animais leitores. Vimos ao mundo com uma certa consciência de nós próprios e do que nos rodeia e temos a impressão de que tudo nos conta histórias: a paisagem, o rosto dos outros, o céu, em tudo encontramos linguagem. Tentamos desentranhá-la, tentamos lê-la. Nesse sentido, não podemos existir enquanto seres humanos sem a leitura. Inventámos a linguagem escrita, a linguagem oral, para tentarmos comunicar essa experiência do mundo, para nos contarmos histórias e através delas, falar dessa experiência. No meu caso, o conhecimento do mundo passou sempre pelos livros. Tive uma infância um pouco particular: o facto de o meu pai pertencer ao corpo diplomático fez com que viajássemos muito e que eu não tivesse nenhum sítio onde me sentisse em casa. A minha casa estava nos livros. Regressar à noite aos livros que conhecia, abri-los e constatar com imenso alívio que o mesmo conto continuava na mesma página, com a mesma ilustração, dava-me uma certa segurança e um certo sentido do lar.
Mas nem toda a gente é leitora…
Nem toda a gente é leitora, mas acho que, no fundo, é porque as circunstâncias fazem que não sejamos todos leitores. A possibilidade está em todos nós. O que quero dizer é que suponho que há pessoas que nunca se apaixonam, suponho que há pessoas que nunca viajam, suponho que há pessoas que não têm uma certa experiência do mundo. E da mesma maneira, existem muitas pessoas que não são leitoras. Mas a possibilidade está dentro de nós.
A proporção de leitores numa dada sociedade nunca foi muito grande – seja na Idade Média, seja no Renascimento ou no século XX. Os leitores nunca foram a maioria. Se, por exemplo, todos os espectadores de um único jogo de futebol comprassem um livro, uma tarde, esse livro passaria a ser o best-seller mais espectacular da História da literatura.
Pensa que, para além de não haver muitos leitores, a leitura está a perder terreno neste momento?
O que está a perder terreno é a inteligência. Estamos a tornar-nos mais estúpidos porque vivemos numa sociedade na qual temos de ser consumidores para que essa sociedade sobreviva. E para ser consumidor, é preciso ser estúpido, porque uma pessoa inteligente nunca gastaria 300 euros num par de calças de ganga rasgadas. É preciso ser mesmo estúpido para isso.
Essa educação da estupidez faz-se desde muito cedo, desde o jardim de infância. É preciso um esforço muito grande para diluir a inteligência das crianças, mas estamos a fazê-lo muito bem. Estamos a conseguir destruir aos poucos os sistemas educativos, éticos e morais, o valor do acto intelectual.
É reversível?
Espero bem que sim. Mas receio que piore antes de melhorar. Falando apenas em livros e literatura, as grandes empresas internacionais tomaram posse da indústria editorial e transformaram o acto literário num modelo de supermercado. Mas continua a haver escritores, pequenos editores, há uma espécie de movimento de resistência – que também passa, por exemplo, pela tecnologia electrónica. Isso faz-me pensar que vamos sobreviver… mas não sei se o meu optimismo se justifica.
Estamos a ler de forma diferente?
Penso que o que está a acontecer, como acontece em tempos de crise, não é o facto de termos passado a ler de forma diferente, mas de estarmos a tornar-nos mais conscientes do que significa ler, ser leitor, do que é a literatura. Estamos a interrogar-nos sobre essa actividade simplesmente porque ela está ameaçada. Antes de o urso polar entrar na lista das espécies em perigo, ninguém falava dos ursos polares – não era um tema de conversa corrente [ri-se]. Surgiu porque os ursos polares estão em perigo. É porque os leitores sentem um perigo que começaram a reflectir sobre o que significa o acto de ler.
Alguém disse que quando ganhámos o elevador, perdemos as escadas. O que perdemos quando passamos do livro em papel para o ebook?
Eu não prescindiria do elevador nem das escadas. Se tivesse de passar seis meses no Pólo Norte, dava-me muito jeito levar um livro electrónico – se houvesse baterias que durassem seis meses. O problema não está na invenção de novos suportes para a leitura. Surge quando esses suportes são promovidos por razões puramente económicas e nos tentam convencer a substituirmos tudo por esse único suporte.
A indústria faz constantemente isso e é o que está a acontecer com os livros. Existe actualmente nos Estados Unidos um movimento para acabar com os livros em papel nas bibliotecas das universidades. São tontices: o problema não tem a ver com a electrónica nem com o livro impresso, tem a ver com um comerciante ganancioso que quer vender computadores.
Mas os editores não querem vender computadores, têm medo deste fenómeno.
Têm medo, mas cada vez mais os contratos de edição incluem os direitos para o ebook. Não acho que isso seja um problema. Paulo Coelho, que não é uma pessoa conhecida pelas suas ideias filantrópicas, colocou todos os seus livros na Internet porque percebeu que as pessoas que liam os livros em formato electrónico iam a seguir comprar o verdadeiro livro.
O livro electrónico é mais uma forma de ler e tudo depende de como queremos ler. Se quiser apenas ler um texto, conhecer um texto, tanto me faz que seja num ecrã ou num livro electrónico. Mas se quiser ler como costumo ler – eu, Alberto Manguel -, fazendo anotações nas margens, passando da página 74 para a página 32 para depois ir espreitar a página 3, não posso fazer isso com um livro electrónico – ou talvez possa, mas é mais complicado. A mim o ebook não me é útil – mas percebo perfeitamente que o seja para outros.
Gostemos ou não, o futuro não será electrónico na mesma?
O futuro não – o presente. O futuro, esse, não sei como vai ser. O meu filho utiliza hoje a electrónica para tudo, para ouvir música, para falar ao telefone, para ler, para comprar bilhetes de avião – tudo passa pela electrónica. Mas também lê livros, também ouve CD de música e discos de vinil. Estamos num presente cuja tecnologia é electrónica – é absurdo negá-lo. Mas daqui a 10 ou 20 anos, vamos dizer: “Ainda usas um computador? Não tens um pffttt?” (não sei que nome iremos dar a tecnologia que virá a seguir).
Estamos a mudar de objectos quotidianos a um ritmo impressionante. Mas nada disso me assusta, faz parte da nossa realidade. O que me assusta é a nossa utilização desses instrumentos e a falta de liberdade com a que os utilizamos. Estamos a transformar-nos cada vez mais em meros consumidores. É essencial reflectirmos sobre isso, porque estamos a perder uma liberdade que define a nossa condição humana.
É muito importante sabermos por que usamos uma coisa. Eu não uso telemóvel, não uso a Internet, não tenho email, mas é uma escolha, não é uma resistência contra algo que me poderia servir. A mim, essas coisas não me servem. Percebo perfeitamente que um cirurgião, que pode ser chamado de urgência, precise do telemóvel, mas a ideia dessa presença constante, dessa comunicação constante, dessa urgência constante, é totalmente falsa. E nós aceitámo-la – mas espero que consigamos reagir. Já chega, já brincámos com todos esses brinquedos e agora vamos pensar um pouco para saber se realmente precisamos deles.
A Internet permite associar ideias, inclusive literárias, quase como se fosse por acaso. Não pensa que isso pode expandir a imaginação?
Essa é precisamente a forma como usamos uma biblioteca. Há mesmo uma biblioteca – que para mim é o arquétipo das bibliotecas -, que é a de Aby Warburg [historiador, 1866-1929]. Foi instalada em Hamburgo em inícios do século XX e é uma biblioteca “associativa” no sentido em que Warburg colocava os livros na ordem em que ele os associava. Ele desenvolveu, por exemplo, uma “lei do leitor”, e em particular uma “lei do bom vizinho”, segundo a qual a informação de que estamos à procura se encontra sempre no livro ao lado daquele que tirámos para consulta [ri-se]. A leitura é uma actividade associativa, sempre foi.
Procuramos uma informação, lemos um livro e ao lado desse livro há outro e é assim que construímos as nossas bibliotecas e as nossas cronologias.
O problema com a Internet é que nos dá a ilusão de possuirmos toda a informação que contém. Mas o facto de essa informação existir não significa que seja nossa. Temos de saber procurá-la, saber se é fiável ou não, saber utilizar as associações que fazemos. Podemos brincar com a Internet dias a fio, à procura de anedotas, de bocados de informação recôndita, etc. É óptimo, mas tem de haver uma actividade mental capaz de incorporar, destilar, recriar essa informação. Ora, um dos grandes problemas actuais dos bibliotecários é que os jovens que chegam às bibliotecas, e que estão habituados a utilizar a Internet para fazer uma espécie de colagem de informação, não sabem ler. Não sabem percorrer um texto para extrair aquilo que precisam, repensá-lo, dizê-lo com as suas próprias palavras, comentá-lo, associá-lo ou resumi-lo – e sobretudo, memorizá-lo -, actividades que fazem parte da leitura enquanto acto criativo. Estão habituados à ideia de que, como isso está lá e está acessível, já é deles. Não é assim.
Isso não é mais a culpa da escola do que da Internet?
A escola não tem culpa, é a nossa sociedade que é culpada. A escola, a universidade, deveriam ser o lugar onde a imaginação tem campo livre, onde se aprende a pensar, a reflectir, sem qualquer meta. Mas isso é algo que estamos a eliminar em todo o mundo. Estamos a transformar os centros de ensino em centros de treino. Estamos a criar escravos. Somos a primeira sociedade que entrega os seus filhos à escravidão, sem qualquer sentimento de culpa. Nesses centros de aprendizagem, estamos a criar seres humanos que não confiam nas suas próprias capacidades e que começam a acreditar que o seu único objectivo na vida é arranjar trabalho para conseguir sobreviver até chegar à reforma – que também já lhes estão a tirar. O que estamos a fazer é horrível. Não tem nada a ver com os valores da Internet, com a competência do professor, faz tudo parte de um conjunto. Somos culpados enquanto sociedade.
Você é um leitor que escreve livros? É mais leitor do que escritor? Não devia, pelo contrário, ser mais escritor do que leitor, depois tantos livros escritos?
Eu comecei por ser leitor. No queria escrever. Depois, tornei-me um leitor que escrevia livros. Mas quando comecei a escrever ficção – um romance intitulado “Notícias del Extranjero” [vai em breve ser editado em Portugal pela Teorema sob o título "Novas chegaram de outro país"] -, a situação mudou. É que, para escrever ficção – embora continuemos a escrever com esse fundo que acumulámos como leitor, com a visão do mundo que nos dão as nossas leituras – e criar um mundo fictício, temos de nos retirar da nossa biblioteca e passar a trabalhar sozinhos.
Não podemos escrever romances a partir de outros romances, porque acabaríamos por parodiar os romances que nos inspiraram. Enquanto o escritor de ensaios trabalha a partir de informação recebida e de uma reflexão acerca dessa informação, o escritor de ficção tem de estar só, num espaço em que se torne possível inventar o mundo praticamente de raiz – as personagens, o espaço, a história. No início, essa ideia metia-me muito medo; agora, é o que mais gosto de fazer.
Acho que a ficção é um instrumento excelente para dar forma a certas perguntas. O ensaio é útil, claro, mas é por vezes demasiado preciso. A ficção permite uma ambiguidade que pode ser mais útil para determinadas perguntas muito complexas. Por exemplo, o tema que me persegue desde o início é a relação entre verdade e ficção, mentira e ficção, mentira e verdade.
Um dia percebi que, desde as minhas primeiras leituras, o que me interessava era saber como distinguimos uma experiência que nos traduz o mundo de uma experiência que atraiçoa o mundo. Como distinguimos a ficção da mentira, a ficção da verdade? Não penso que nos seja possível termos uma visão verdadeira, total, do mundo. Acho que podemos ter acesso a um certo ponto de vista – e é esse ponto de vista que vai sendo definido através das histórias que contamos.
E isso tem a ver com a escrita ficcional?
Sim. Quando temos uma experiência do mundo, o nosso impulso é transpô-la em palavras para a perceber. Por vezes, encontramos nos escritos que lemos as palavras que nos parecem justas. Mas, doutras vezes, queremos ser nós próprios a nomear essa experiência. O problema é que, ao mesmo tempo, sabemos que a linguagem é imprecisa, que nunca chega para definir sequer as coisas mais simples. Então recorremos não apenas à linguagem, mas também à história que contamos através da linguagem. E assim, através dessa experiência que inventamos, criamos uma espécie de espelho da experiência que queremos contar. Por exemplo, todos temos medo do desconhecido. Temos medo do que pode ser falso, da aparência das coisas. Mas como explicar esse medo? Inventando o conto do Capuchinho Vermelho. Dessa forma, sem necessariamente nomear esse medo, o conto transmite-no-lo através de uma experiência que sabemos ser fictícia, mas que no entanto conseguimos viver através da linguagem.
O seu amor pelas bibliotecas vem de onde? Da sua juventude, quando lia para Borges (que era uma espécie de biblioteca ambulante e anotada), da biblioteca da casa do seu pai em Buenos Aires, onde se escondia para ler?
Não. A minha relação começou quando tinha três, quatro anos. Por um lado, é uma relação fetichista – o objecto- livro apaixona-me – e por outro, é uma relação de conhecimento. O conhecimento do mundo vem-me, em primeiro lugar, dos livros.
Para Borges, o conhecimento do mundo também passava pelos livros, mas ele não tinha qualquer relação fetichista com os livros. Não estava interessado em guardar livros – oferecia-os, tinha poucos livros. Eu ofereço muitos livros, mas compro livros para os oferecer. Por vezes, ofereço livros da minha biblioteca – mas o que nunca faço é emprestar livros, porque isso é um apelo ao roubo.
Disse que quando de leitor passou a escritor, teve de sair da sua biblioteca.
Não é bem isso, uma vez que escrevo na minha biblioteca. Há uma secção, com dois andares, onde também há livros, mas onde tenho o meu escritório, com os meus objectos dispostos de uma certa maneira. Sou muito picuinhas nesse sentido. O que quis dizer é que, quando escrevo, preciso de esquecer-me daquilo que li. Posso ler certos livros; há autores que não me contagiam. Mas há outros que não posso ler de forma alguma – Borges, Calvino, Chesterton – porque são como aquelas melodias que nos ficam na cabeça e que passamos o dia a cantarolar. Tento ler textos mais neutros.
Mais distantes dos temas sobre os quais está a escrever?
Não necessariamente, apenas os que têm uma voz menos imponente. Há grandes escritores cuja voz é muito mais suave. Autores como Conrad, por exemplo, de quem gosto muito, ou Bioy Casares, cuja voz não é contagiosa.
A sua biblioteca parece ela própria como uma personagem de romance: imponente, secreta, maravilhosa. Contém 40 mil livros e está instalada num presbitério.
Sim. O presbitério, que era a casa do padre, está colado à igreja [da aldeia]. E tem um enorme jardim, onde havia um estábulo de pedra que tinha sido demolido há três séculos. Nós reconstruímo-lo e foi aí que instalei a biblioteca.
É caótica ou organizada?
É muito organizada. Sei onde está cada livro. A ordem principal é a da língua em que o livro foi escrito. Há uma secção de inglês, de castelhano, de italiano… E dentro dessa ordem, a ordem alfabética. Mas depois há muitas excepções, com secções sobre a Bíblia, sobre mitologia, lendas do Judeu Errante, cozinha, romances policiais…
Não sente frustração quando pensa que há jóias literárias que lhe passam ao lado?
Não. Quando era adolescente, angustiava-me pensar que nunca iria poder ter nem ler todos os livros que queria. Mas essa angústia passa-nos e transforma-se numa espécie de alívio [ri-se]. É óbvio que não vou ler tudo o que é publicado, é óbvio que nem vou ter conhecimento de tudo aquilo que é publicado. Aliás, prefiro concentrar-me em certos livros.
O tipo de leitura que pratico agora, nesta idade – embora continue a ler algumas coisas novas – é a releitura. Por exemplo, há já mais de dois anos que leio um canto de Dante todas as manhãs, antes de tomar o pequeno almoço [ri-se] – com um comentário diferente, tomando notas.
Já completei esse percurso umas dez vezes. É um tipo de leitura que faço por prazer – e que me parece infinito. Nunca vou conseguir saber o suficiente acerca da “Divina Comédia”, mas felizmente, já não tenho aquela angústia. É como pensar em sítios que nunca visitarei, pessoas que nunca conhecerei. Que alívio! [ri-se]
Lê sobretudo ficção, ou também não ficção?
Leio principalmente ensaios – porque escrevo ensaios e portanto certos temas me interessam em particular. Também leio ficção, mas acho que, aí, preciso de uma certa distância cronológica, de sentir-me numa geração muito posterior ao texto. É-me difícil ler os meus contemporâneos. Há alguns autores actuais de quem gosto muito – entre os argentinos, Eduardo Berti, Edgardo Cozarinsky; em França, Pascal Quignard, Jean Echenoz; na Alemanha, Daniel Kehlmann; entre os americanos Cynthia Ozick (gosto mesmo muito dela), Richard Ford. Mas não gosto de nenhum escritor daquela geração [norte-americana] de [Jonathan] Franzen, [Dave] Eggers. Parecem-me todos saídos da mesma máquina, com romancezitos bem montados que soam modernos e que toda a gente terá esquecido daqui a 10 ou 20 anos.
E os romances policiais, a ficção científica?
Gosto imenso. A ficção científica – e eu diria que o romance policial também – já não são os romances de género que foram no passado. Os escritores que acabei de nomear escrevem romances policiais; [Margaret] Atwood escreve ficção científica, Doris Lessing também.
Há umas gerações uma pessoa não erudita, mas culta, tinha a obrigação de ter lido certos livros. Hoje, essa ideia parece ter sido esquecida.
A questão é que deixámos cair a noção de “ser culto”. Agora, não passa pela cabeça de ninguém dizer que uma pessoa é culta ou não é culta. Como já disse, há uma perda de prestígio do acto intelectual. Hoje, uma pessoa pode admitir que é estúpida, que passa o seu tempo a jogar jogos de vídeo ou que só se interessa pela moda. Não vai chocar ninguém. Antes, tínhamos vergonha de dizer coisas dessas, mas hoje é espantoso ver o número de pessoas adultas que jogam jogos totalmente imbecis.
Há leitores que só querem ler coisas novas.
Mas essa é a tal política do supermercado. Não vamos ao supermercado comprar um produto do ano passado, mas coisas que ainda não passaram do prazo. É o mesmo com os livros: agora, têm um prazo de caducidade. Passadas três semanas, o que não foi vendido desaparece. É uma política muito perigosa.
Mas ler os clássicos na escola continua a fazer sentido. “Os Lusíadas” de Camões, por exemplo.
Claro que continua. Os grandes clássicos não foram escolhidos por ninguém; não há um comité que decide que Homero é importante. O que houve foram cem gerações de leitores que disseram que esse livro é importante. É isso que define o clássico, é a obra que não se esgota junto dos seus leitores. E isso continua a ser importante, embora muitos leitores – e muita gente – não o reconheçam. As crianças têm uma imaginação activa, uma inteligência activa. Querem aprender a pensar. Na Idade Média, amarrava-se as crianças ao berço para as imobilizar. Hoje, amarramos a mente das crianças exactamente da mesma forma. Se me confiarem uma turma de crianças, comprometo-me a fazer com que elas leiam Camões com muitíssimo entusiasmo. É preciso dizer-lhes que são inteligentes e que vão conseguir ler essa obra. As crianças adoram palavras complicadas, termos difíceis, histórias onde não se percebe tudo. Mas a indústria não quer isso, quer tornar as coisas mais simples – e então fazem resumos, simplificam, publicam coisas idiotas para crianças e acabam por não publicar nada. Apenas jogos de vídeo.
A nova geração continua a ter gosto pela leitura. Para o ser humano, o instinto de sobrevivência não se resume à necessidade de comer e beber; também inclui a necessidade de pensar. E isso é verdade seja onde for – aconteceu nos campos de concentração, acontece nas favelas mais pobres, acontece nas situações mais extremas. Continuamos a pensar, a criar, a interrogarmo-nos. E temos de lutar por isso. Não somos cegos; podemos dizer que não.
Diz que se sente mais canadiano do que outra coisa. Porquê?
Ser canadiano foi uma escolha. Cheguei ao Canadá sem saber o que era o Canadá. Fui lá porque um dos meu livros foi publicado lá e teve muito êxito. Podia ter sido na China. Ora, no fundo, eu nunca tinha realmente vivido numa democracia. E de repente cheguei a um país onde votar tinha significado, onde a voz de um indivíduo na sociedade tinha significado, onde existia uma responsabilidade cívica. Queria pertencer a esse país!
Para mais, cheguei lá em finais dos anos 1970, inícios dos anos 1980, no meio de um verdadeiro boom cultural. Queriam criar uma cultura canadiana, que até lá tinha sido inglesa, britânica ou americana. Por isso, se uma pessoa quisesse montar uma peça de teatro, fazer um filme, escrever um livro, não havia qualquer problema. Foi assim que, eu, um estrangeiro, comecei a fazer rádio, televisão, todo o tipo de coisas. Isso nunca me tinha acontecido nem nunca me aconteceu depois em mais sítio algum.
Não acredito nas nacionalidades impostas. O facto de nascer num sítio é um puro acaso, não define nada. Enfim, se nos criarmos lá, se estudarmos lá, então sim. No meu caso, a Argentina foi importante por causa de minha educação secundária. Fui aluno do Colégio Nacional de Buenos Aires [liceu que depende da Universidade de Buenos Aires] e isso definiu-me. É uma parte de mim próprio que aceito. Mas o Canadá foi uma escolha. Por isso, continuo a declarar-me canadiano – apesar de haver lá agora um governo de direita imundo.
A leitura e a escrita vão desaparecer? Há quem pense que vamos regressar a uma espécie de tradição oral high-tech graças a computadores capazes de comunicar através da fala.
A tradição oral não tem nada de mau. O problema é quando a tradição não é oral, mas feita apenas de conversas que nunca chegam a ter lugar. Já eliminámos até os locais onde conversar. Ainda há alguns cafés, mas todos têm televisão, música. E mesmo esses estão a desaparecer.
Nós também iremos provavelmente desaparecer. Mas se sobrevivermos como seres humanos – o que não é seguro – fá-lo-emos com a linguagem escrita, com a linguagem falada e com a linguagem lida. Vamos sobreviver com os nossos livros. Se desaparecermos, os livros também desaparecerão. E no fundo, isso talvez seja uma coisa óptima para o planeta – para as árvores, para as formigas, para os ursos polares…
02.07.2010
Por: Ana Gerschenfeld
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